terça-feira, 10 de julho de 2007

Amélia

Amélia levantou-se sem vontade. Percebeu que não queria tomar banho, não queria comer, não estava para conversas, não queria trabalhar e não queria pensar nas coisas que lhe poderia apetecer fazer. No entanto, levantou-se, aniquilou a preguiça e empurrou à sua frente a iniquidade de mais um dia.
Nesse dia, soluçou banalidades na presença de pessoas, ouviu as dificuldades de um ou dois amigos, e dois ou três disparates anónimos, gastou tempo ao telefone, disse que sim a uma proposta (perfeitamente dispensável) a que só queria dizer não, concordou com pessoas que despreza (para algumas até sorriu) e quando voltou para casa, ignorou o sofá, ignorou o marido, ignorou os filhos, ignorou o cansaço, mas não soube ignorar o pó, a roupa por lavar, o jantar… Antes de dormir repetiu três vezes, em frente ao espelho, que era feliz. Respirou fundo e enfiou-se na cama sem um pensamento que a perturbasse.
Conheço Amélia. Amélia acredita que é feliz. E essa crença críptica, descodificada por um espelho é, de facto, o início dessa felicidade. Todos os dias uma vontade de vida se apodera dela. Todos os dias essa vontade se sobrepõe à falta de vontade de fazer as coisas que faz. Todos os dias, Amélia é feliz. Amélia tem uma necessidade básica - a felicidade - e assume as despesas desse compromisso diário.
Um sentimento próximo da inveja toma conta de mim. Não direi sempre, mas pelo menos uma vez por semana gostava de ser Amélia. Não para fazer coisas que me desagradam (porque nisso sou perita), mas para conseguir ser feliz, ou dizer que sou feliz, enquanto me vejo envolvida por essas contrariedades.
Não consigo. Detesto a incoerência e o “faz de conta que corre bem, para não veres o que corre mal”.
Essas coisas que faço para matar tempo ou para matar as etapas da edificação das relações matam-me todos os dias um pouco. Não suporto os gestos consentidos, só para evitar constrangimentos, ou o nível de condescendência que invariavelmente me imponho com os meus interlocutores. Não me fazem mais feliz, estas coisas que faço todos os dias sem vontade. Não tenho um espelho que me suporte a mentira da felicidade confessa. Quero aprender a dizer “não” sem que isso me angustie. Mas, por muito que ensaie, só me saem “nãos” às pessoas indevidas, ou àquelas a quem sei que têm a capacidade de suportar todos os meus surtos de mau feitio declarado e que terão a capacidade de me acompanhar até ao mais inesperado “sim”.
Encravou-se-me na garganta um “não” de uma obesidade mórbida. Sei que o hei-de expulsar, só não sei se o farei na direcção certa.
Dedico estas palavras às pessoas, cuja paciência e o companheirismo nunca se abalaram com os meus tumultos. Dedico-as a todos os nomes inscritos no meu império de sensações, a memória. E a uma ou outra Amélia, que resiste à contemplação dos seus dias tortuosos, apesar do culto dos espelhos.

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